sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

A Tecelã

Poema de Mauro Mota


Toca a sereia na fábrica
e o apito como um chicote
bate na manhã nascente
e bate na tua cama
no sono da madrugada.
Ternuras de áspera lona
pelo corpo adolescente.
É o trabalho que te chama.
Às pressas tomas o banho,
tomas teu café com pão,
tomas teu lugar no bote
no cais de Capibaribe.
Deixas chorando na esteira
teu filho de mãe solteira.
Levas ao lado a marmita,
contendo a mesma ração
do meio de todo o dia,
a carne-seca e o feijão.
De tudo quanto ele pede,
dás só bom dia ao patrão,
e recomeças a luta
na engrenagem da fiação.
Ai, tecelã sem memória,
de onde veio esse algodão?
Lembras o avô semeador,
com as sementes na mão,
e os cultivadores pais?
Perdidos na plantação
ficaram teus ancestrais.
Plantaram muito. O algodão
nasceu também na cabeça,
cresceu no peito e na cara.
Dispersiva tecelã,
esse algodão quem colheu?
Tuas pequenas irmãs,
deixando a infância colhida
e o suor infantil e o tempo
na roda da bolandeira
para fazer-te fiandeira.
Ai, tecelã perdulária,
esse algodão quem colheu?
Muito embora nada tenhas,
estás tecendo o que é teu.
Teces tecendo a ti mesma
na imensa maquinaria,
como se entrasses inteira
na boca do tear e desses
a cor do rosto e dos olhos
e o teu sangue à estamparia.
Os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios
e noutros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa.
Ó tecelã perdulária,
enroscas-te em tanta gente
com os ademanes ofídicos
da serpente multifária.
A multidão dos tecidos
exige-te esse tributo.
Para ti, nem sobra ao menos
um pano preto de luto.
Vestes as moças da tua 
idade e dos teus anseios,
mas livres da maldição
do teu salário mensal,
com o desconto compulsório,
com os infalíveis cortes,
de uma teórica assistência,
que não chega na doença,
nem chega na tua morte.
Com essa policromia 
de fazendas, todo o dia,
iluminas os passeios,
brilhas nos corpos alheios.
E essas moças desconhecem
o teu sofrimento têxtil,
teu desespero fabril.
Teces os vestidos, teces 
agasalhos e camisas,
os lenços especialmente
para adeus, choro e coriza.
Teces toalhas de mesa
e a tua mesa vazia
Toca a sereia da fábrica,
e o apito como um chicote
bate neste fim de tarde,
bate no rosto da lua.
Vais de novo para o bote.
Navegam fome e cansaço
nas águas negras do rio.
Há muita gente na rua,
parada no meio-fio.
Nem liga importância à tua 
blusa rota de operária.
Vestes o Recife e voltas 
para casa, quase nua.

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